Luiz Pacheco
O Luiz Pacheco é muito requisitado para entrevistas...
Opá, isso começou com a entrevista do Expresso, feita por aquela maluca, a Clara Ferreira Alves, e pelo outro mangas, o Torcato Sepúlveda, que assinou com outro nome... porque esses gajos é assim: quando um gajo lhes dá uma entrevista cai-nos tudo em cima. Eles não vão pedir entrevistas ao Cesariny porque sabem que ele nem liga... Agora, eu já tenho um balanço, um pé muito bem calçado de entrevistas... sabes como é que eles fazem? Vêm com o que leram das outras entrevistas e as perguntas são sempre as mesmas... eles têm lá no ficheiro... antes de virem falar comigo eles não vão ler as minhas obras completas... nem as encontravam... De entrevista em entrevista é a mesma chapa, vêm com perguntas de chapa. É como o outra: “o que é que você pensa da juventude de hoje?” Eu não penso nada, eu nem conheço os meus filhos... uma vez apareceu-me aqui um gajo da Focus... como é que era o nome dele? É como os pastéis... de Tentúgal... Rui Tentúgal... disse-me que era casado com a Cláudia Galhoz... depois é que eu percebi, então o gajo vinha com perguntas que ela já me tinha feito há 10 anos para o Blitz.
Como é que se tem dado aqui neste lar?
Há uns tempos andei com a ideia de fazer um trabalho sobre lares. A má fama dos lares é justificada... e não sabes tu da metade do que se passa aqui... há aqui casos humanos dramáticos, por exemplo, a senhora do quarto aqui ao lado... à noite têm de lhe mudar a fralda... passa horas a berrar “srª empregada, srª empregada...” Ninguém aparece... eu ainda lá fui uma vez... aqui não há campainha de alarme, não há telefone. Também, o que é que isso interessa, no lar de Palmela havia telefone mas tocava-se e não estava lá ninguém... Esse lar de Palmela era o lar nº 1, o melhor do país, segundo a Deco. Era um modelo. O projecto do lar deve ter sido gamado do estrangeiro. Era um lar invulgar, com todas as condições. Mas o ambiente era muito desumano, era uma espécie de aldeia turística. Falo disso no último texto do Isto de Estar Vivo, o “Memorial do Recolhimento”. Era um lar no meio de uma serra, com o ar puríssimo de Palmela, uma construção nova, em arco, sem vizinhança, sem casas à volta... Era muito bonito... Fui para lá logo quando aquilo começou... no início, a fase de promoção, serviam um bacalhau altíssimo, as torradas pareciam as das pastelarias da Baixa, dois andares de torradas, molhadas em manteiga, o café com leite vinha com dois pacotes de açúcar... depois, um dia, começou a aparecer só um pacote... vieram as economias... as torradas passaram a ter só um andar com uma lambidela de margarina... Agora este aqui, do Príncipe Real, já se aproxima mais da generalidade. Por exemplo, as giletes que eles dão aqui algumas já barbearam mortos. Tu não fazes ideia... Isto é um armazém de pré-cadaveres, é uma parada de monstros. Há um gajo que não tem uma perna, anda de cadeira de rodas empurrado por um velhinho de 88 anos, há outro que é cego, tem glaucoma, mais a namorada, que é horrorosa, mas como ele não vê também não faz mal... outro tem alzheimer, o sr. Américo, entra aqui, de boné e pijama, dá uma volta pelo quarto, às vezes vai à casa de banho, sai, não repara em ninguém, não diz nada... há outro que é o sr. Vergílio, anda pelos corredores a rir e a assobiar, são dois fantasmas... Há uma que anda aqui a passear de um lado para o outro, diz “ai, ai, ai”, depois vai bater na outra que está sempre sentada na cama, vai lá mexer... não têm mão nela... com estes gajos não se pode estar a discutir, é comprimido, água para o bucho, não vai um vão dois, fica a dormir dois dias seguintes... Isto agora aqui são os últimos dia do condenado. Aqui a lei é morrer devagar. Está uma a morrer ali, ou já morreu, não sei, estou eu a morrer aqui, está outra a morrer ali... A ver quem morre primeiro… “Já foi”, é o que dizem quando alguém morre. Agora já sei o que vão dizer quando eu morrer.
Já pensou em ser operado aos olhos?
Operado? Nem penses nisso. O que é que eu quero ver com 80 anos? Eu quando vou ali à sala, onde estão os velhos todos, tiro os óculos para ver tudo nublado, para não me ver ao espelho... Aquilo é um pavor! A Isabel da Nóbrega, o Artur Ramos e a Fernanda, cunhada do Manuel Alegre, queriam levar-me a Coimbra para ser operado as cataratas. Não quero. Eu é que sei. Isso é suicidário. Quando eu quiser morrer vou a Coimbra. Depois levaram-me a um oftalmologista na Av. da Liberdade. Diagnosticaram-me as cataratas. Tive que largar 1000 paus para umas gotas. Não servem de nada. Caem-me para o nariz. Já tenho o quarto todo o cor... e o quarto está reduzido ao essencial... É uma experiência nova, não ver é uma experiência nova.
E o Liceu Camões?
Eu ficava sempre na carteira da frente, junto ao quadro, porque via mal. As janelas da sala davam para o jardim do Matadouro, onde é o Fórum Picoas... Sabes quem é foi meu professor? O A. do Prado Coelho, pai do Jacinto e avô deste Eduardinho, o almôndega peluda... era a alcunha dele... que culpa tenho eu que lhe chamem assim...?
O Eduardo Prado Coelho deu-lhe uma porrada muito grande no Diário de Lisboa, num texto que escreveu sobre Crítica de Circunstância, o primeiro livro do Luiz Pacheco...O gajo disse que o livro tinha graça mas que não continha uma única ideia, ou seja, o Luiz Pacheco não tem ideias... Ora se isso é verdade então o problema, a culpa é da família dele... É que eu já aturei 3 gerações de Prados Coelho. O avô no Liceu Camões, por sinal fui o melhor aluno dele, mas pelos vistos não assimilei nenhuma ideia dele. Do que li do Jacinto encontrei algumas ideias mas não me devem ter entrado na pinha. Este, o novinho, tem ideias mas são francesas. O avô dele foi meu professor no 6º ano e à entrada da aula dizia: “recomenda-se o máximo de silêncio”. Não era o gajo, era o indefinido, o Jeová! A turma estava-se cagando para o gajo. Durante um ano, para não se chatear, e para nós não nos chatearmos também, pôs-nos a recitar “A Balada da Neve” do Augusto Gil: “bate leve levemente como quem chama por mim…” Esse rapazola (EPC), esse merdas, era um gajo terrível do partido. Não foi por acaso que o gajo veio de Paris para cá quando o Carrilho se tornou ministro. Está a mexer nos cordelinhos do Carrilho e da Bárbara...
Como é que o Luiz e o Cesariny aparecem a escrever num jornal de automobilismo como O Volante?
O Volante era um jornal maluco, era a publicação mais antiga de automobilismo em Portugal. Era dirigido pelo Campos Júnior, que também tinha o Átomo, com o Gaspas [Gaspar Simões] como crítico literário, e o Pedro da Silveira a mexer lá por trás. A minha vantagem em relação ao Cesariny era que eu sabia andar de bicicleta. Num artigo sobre turismo, o Cesariny disse: “da Serra de Sintra vêem-se os montes do Alentejo”. Era a Arrábida... Fizemos, por exemplo, a cobertura do circuito de Monsanto, com o Fangio... depois traduzíamos artigos do L’Equipe. Depois o Pedro da Silveira arranjou-me um emprego no Mundo Motor ou Mundo Motorizado, que ficava na rua do Alecrim, era uma imitação d’O Volante. Só lá estive um mês, nunca me pagaram. Aí também fazia traduções do L’Equipe, punha-se a riscar o jornal e o editor dizia: “não faça isso que o jornal é do homem do quiosque, que nos empresta”. O Volante ainda assinava o L’Equipe, esses nem isso...
Esteve preso com o Edmundo Pedro...
O Edmundo Pedro é um tipo muito giro... foi preso por causa de contrabando, mas também por resistência, para foder a economia do Salazar... Um vez o gajo ia num camião com uma carga valiosa, estava cheio de whisky e de tabaco... Um GNR manda-o parar, os gajos não podiam perder a carga... então o Edmundo Pedro apontou-lhe um pistolão... o GNR abre a camisa e diz: “dispare, dispare que mata um homem”. O Edmundo Pedro ficou aflito, disse ao GNR para fugir, para desaparecer, que não queria matá-lo nem ser preso. O GNR desapareceu. Depois foi saber quem era o GNR e foi a casa dele dizer-lhe que ele se tinha portado muito bem e levou-lhe um envelope cheio de dinheiro. É um gajo muito giro... Quando foi aquela cegada do Quartel de Beja, o Edmundo Pedro ia ser julgado no Tribunal Militar de Santa Clara, então pediu à mulher para lhe levar pimenta... quando estava no tribunal mandou pimenta para os olhos do PIDE... à saída tinha um carro à espera dele... fugiu e tentou abrir a porta do carro mas era a errada, estava fechada, fodeu-se... Opá, o gajo andava a ler no Limoeiro o Charles Dickens, um grande tijolo, o Grandes Esperanças. Nunca acabou de ler o livro, porque era ora lhe adiantava 100 páginas, depois recuava outra vez, e ele nunca deu por nada... A mulher levava-lhe comida todos os dias. Dessa vez comi muito bem...
O que é, para si, um libertino?
As pessoas não percebem nada do que é o libertino. O termo ficou, na linguagem vulgar, associado a coisas disparatadas, como sinónimo de devassidão. Ora libertino não é apenas um devasso. Não é apenas aquele tipo que gosta de ir para a cama com homens, com mulheres, com todos ao mesmo tempo... O libertino é um tipo livre, que está contra todas as tiranias. O Sade, por exemplo... aquilo que o Sade conta está quase tudo dentro da imaginação dele... Repara: o gajo esteve quarenta e tal anos prisioneiro em masmorras e hospícios, e à ordem de quatro regimes: a realeza absoluta, a realeza constitucional, a Revolução e o Império, o que mostra bem como o libertino é o maior inimigo de todos os sistemas e como estes o odeiam, o temem. Porque os sistemas são a ordem e o conforto, ao passo que o libertino é a aventura, é o descontrolo. O Sade está aí. O Sade está entre nós. Mais: o Sade está em todos, dentro de nós. Mas o libertino também é o ateu radical. É aquele que faz da sua vida amorosa um espectáculo, um espectáculo através das palavras, do discurso. Conheci muita gente devassa, mas libertinos muito poucos. Agora, aquela coisa da crueldade como fonte de prazer sexual aí já tenho as minhas resistências, já tenho as minhas repugnâncias. Pessoalmente, do ponto de vista do comportamento sexual, prefiro o Valmont, das Ligações Perigosas, do Laclos. Ou seja, o Sade é exemplar mas não é um bom exemplo.
A casa em Massamá, para onde foi viver em Setembro de 1970, era conhecida na vizinhança como uma casa de má fama...
A casa em Massamá era um disparate... às vezes era uma balbúrdia do caneco... a tal política de porta aberta em Portugal não dá… em Portugal não dá… quer dizer, não dá, os negros, por exemplo, têm isso, em casa moram 4, de repente vêm mais 5, ficam, ajeitam-se, vêm mais 10, ajeitam-se... são muito solidários e não se importam de ficar a dormir no meio do chão… em Massamá era assim, dormiam no meio do chão, de qualquer maneira... A gente não tem a vida na mão, de repente, depois de mortos, não precisamos de nada. Nem dinheiro, nem vestes, nem nada... Agora, às vezes o Chico Bretz avisava: “olhem que o Pacheco é mau de assoar”. Porque de repente eu não lhes abria a porta ou punha-os na rua… Se me chateavam era limpinho, bom, adiante…
[Bate à porta um velho para informar que o almoço é empadão]
Pacheco: “Este gajo irrita-me. Quando estou a dormir na cadeira ele grita: BOM DIA. Ele não diz bom dia, ele atira o bom dia como quem atira uma pedra. "
Recebe uma bolsa do Ministério da Cultura, por mérito cultural...
O Alçada Baptista encontrou-me um dia na Av. da República e perguntou-me: “não lhe dava jeito uns 7 ou 8 contos por mês?”. “Ó dr., não me diga isso”. Se fosse um conto ainda acreditava…” Depois vi o decreto e concorri. Tive logo um subsídio de 10 contos. Depois, a Maria João Rolo Duarte, a mãe deste Pedro, é que conseguiu que o Santana Lopes, quando era Secretário de Estado da Cultura, me aumentasse o subsídio, que na altura ia nos 60 contos... a Maria João Rolo Duarte sabia que o Cesariny recebia mais que eu e, numa festa em que encontrou o Santana Lopes, fê-lo prometer que me aumentava o subsídio. Como ela escrevia na Capital, publicou um texto que comprometeu o Santana. Recebi mais 30 contos por mês, passou para 90 contos. Mais trinta contos por mês, um conto por dia... de repente apareceu-me lá em Setúbal uma carta com retroactivos, 6 meses, foi um balúrdio... 30 contos é uma grande diferença... Gosto do Santana por causa disso. E também porque é um playboy, um gajo dos copos, das discotecas…
Nos últimos anos tem publicado livros a um ritmo espantoso. Uma Admirável Droga...
Isso é aquilo que eu chamo um livro póstumo, eu não tive intervenção quase nenhuma naquilo... a Isabel Segorbe, de Coimbra, telefonou-me a perguntar se podia editar um texto meu que tinha lá em casa... mudou de casa e achou lá aquela laracha... eu não sabia o que era aquilo... De repente sou confrontado com situações de que não lembro de nada... eu andei debaixo de álcool, álcool misturado com drogas, não é o haxixe e essas coisas que vocês tomam agora, era o Lorenine, era o Valium, era essas merdas. Eu tinha dias em que não me lembrava, no dia seguinte, absolutamente de nada... podem contar-me tudo o que quiserem que eu não vou negar, mas vou negar para quê? Já não consegues desfazer em muita gente a opinião que fazem de ti, é muito difícil de desfazer... por exemplo, o B.B., foi ele que apresentou esse livro de Coimbra, o lançamento foi ali na livraria Ler Devagar... eu não fui lá, ficou muito ofendido... eu se fosse lá era para lhe dar com uma bengalada... o gajo começa: “Luiz Pacheco, bebedeiras, prisões, sexo bilateral... até parece que ninguém viu o B.B. bêbedo... eu por acaso vi... às vezes aparecem-me aqui gajos que dizem que me conhecem... sei lá quem são os gajos, não faço ideia nenhuma... um dia destes apareceu aqui um gajo: “eu sou o António Carranca”, como quem diz “eu sou o Napoleão”... eu não fixo caras... quando você chegou aqui, se dissesse “eu sou o Kadafi”, eu acreditava... mesmo com os óculos eu levo uns segundos... se fores às Caldas da Rainha há montes de gajos que me conhecem ou se lembram de mim e eu não faço ideia quem são...
No 25 de Abril foi de pijama para o Largo do Carmo...
Mas não foi de propósito... eu estava em casa, sozinho, o Paulo tinha ido para o liceu, estava a rever provas do Pacheco versus Cesariny... de repente chateei-me, não tinha telefonia, não tinha televisão, não tinha nada, chateei-me de rever provas e disse vou ali beber uma cerveja e quando venho de beber a cerveja há o barbeiro que me diz “ó senhor Pacheco, olhe que há revolução em Lisboa”. Então enfiei o sobretudo que me deu o marido da Natália Correia e fui para Lisboa... não foi de propósito que eu fui para o Carmo de sobretudo e pijama... Agora não respondo mais nada... estou cansado... são 80 anos, caramba!... vá, pira-te que eu tenho de mijar e tenho de ir comer qualquer coisa...
Podem ler a entrevista completa em esplanar.blogspot.com
Já agora, em 15 de Setembro de 2005 foi editado o Diário Remendado de Luiz Pacheco
1 Comments:
Já percebi que ninguém teve paciência para ler este excerto de entrevista.
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