Angústia para o jantar
Têm-me incomodado, com particular indignação, nesta campanha do referendo à despenalização do aborto, não só as declarações de João César das Neves, mas também a veleidade com que alguns partidários quer do "Sim", quer do "Não" (aqui não vou fazer qualquer tipo de distrinça), se comportam nos "jantares-comício", aquando de um qualquer directo para a televisão. É vê-los em segundo plano, de telemóvel em punho, nesse típico e prazenteiro costume português, a sorrirem e a acenarem para a câmara enquanto se percebe que, ao telemóvel, dirão algo do género "Mãe, estou na RTP1! Estou a acenar. Vês? Não? Deixa-me chegar mais para o lado. Esta cabra que está a ser entrevistada, acho que se chama Ferreira Leite está a tapar-me. E agora? Já me vês? Põe a gravar. Se soubesse tinha trazido a camisola nova".
Não digo que se tenha que assumir uma fisionomia de enterro nestas situações, mas acho o assunto demasiado sério para que se compadeça com tamanha leviandade. Temo que o voto do dia 11, para certas pessoas, não seja mais do que um simples preencher do totoloto, um "derby" de futebol ou, pior ainda, imposto por doutrinas seguidistas (partidárias ou outras). Ganhe o "Sim" ou o "Não", nada estará resolvido em definitivo. O trabalho árduo virá de seguida. A tentativa de educação de um povo do qual já os romanos diziam que não se governava, nem tão pouco se deixava governar. Claro que será sempre mais triste se uma certa votação vencer... Em todo o caso, nunca ninguém poderá festejar, embora talvez muitos venham a cantar vitória, fazendo soar as buzinas dos automóveis, telefonando e gesticulando caso se cruzem com alguma câmara de tv. E, muito sinceramente, estas pessoas deviam ser impedidas de votar já que não percebem o que é o respeito pela pessoa humana e pelos seus dramas, uma vez que para elas tudo deve ser vivido em clima de festa. Talvez tivesse sido melhor se um governo corajoso não recorresse ao referendo e decidisse, como lhe compete e está legitimado. Pelo menos, poderíamos ter sido poupados a este espectáculo deprimente à hora do jantar, logo hoje que fiz um fusili de atum com tão bom aspecto.
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